Clínica de Fisioterapia
Autor: Aguinaldo Morais Valença
Publicado dia 17 de Agosto de 2003

Clínica de Fisioterapia

Eu luto. Luto muito, contra essa propagada fase de terceira idade ou idade feliz. Estou com João Ubaldo, só tenho uma idade e não posso dizer que é a primeira, para não dar margem a algum gaiato responder:

- Se tem a primeira, então existe a terceira e assim por diante.

Idade feliz , muito menos. Feliz para quem? Para o farmacêutico? Mesmo assim, no auge dos meus cinqüenta e cinco, estou contente e ansioso pelos meus sessenta, para viver harmoniosamente com as minhas dores. Dizia um amigo meu que ao chegarmos aos quarenta as dores começam a aparecer; em compensação, quando chegarmos aos sessenta – se chegarmos - , já nos acostumamos com todas elas. Estou descobrindo isso com a contumaz freqüência a uma clínica de fisioterapia, aqui na Barra, por conta de uma distensão na virilha, aliada a uma tendinite no braço direito, igual a do Presidente Lula. Brasileiro tem disso. Para imitar pessoas famosas, até às dores ele se submete.

Fala-se que dor, nunca vem só. Sempre vem acompanhada e o seu desfecho é muitas vezes inesperado e inexplicável. No meu caso, resultou em uma angioplastia. Ora, onde já se viu? É possível. São coisas dos tempos. Impossibilitado de me submeter a um teste ergométrico, parti para uma cintilografia (para os que desconhecem, é um teste sofisticado onde você não precisa correr na esteira para saber que suas veias e artérias estão entupidas por conta dos excessos cometidos ao longo da vida). O resultado foi a suspeita de uma isquemia que depois foi confirmada com um cateterismo, enfim; acabei fazendo a tal angioplastia. Eis a comprovação que elas vêm juntas. Plastia lembra plástico, cartões plásticos, o que tem tudo a ver com a minha fabrica de cartões, responsável única pelo elevado grau de estresse a que tenho sido submetido diuturnamente.

Hoje, pela terceira vez, estou voltando à clínica para tratamento das duas primeiras lesões, a da virilha e a do braço. Confesso que além de expert no assunto, estou ficando viciado. Hão de convir que é uma coisa boa. Pois, se assim não fosse, não viciava. Pra começar, graças a Deus, sou obrigado a desligar o celular. Deito, relaxo, durmo, coloco minha leitura semanal em dia, e, de quebra ainda assisto aulas de fisioterapia e terapia ocupacional de graça, ministradas pelos freqüentadores assíduos e vitalícios da clínica. Até hoje tenho curiosidade de saber a diferença entre fisioterapia e terapia ocupacional, pelo menos para esclarecer um primo meu, de Pernambuco, que quando o médico lhe falou que deveria fazer terapia ocupacional ficou assustado e se negou veementemente. Esbravejando ele gritou que se até àquela data, naquela idade, não havia trabalhado para ninguém, não haveria de ser agora, depois de velho, que se ocuparia de alguma coisa. Ele é aquele mesmo que, de tão preguiçoso, não votou em Lula por conta dos empregos prometidos durante a campanha; poderia sobrar algum pra ele.

Sinto-me hoje igual a um fumante quando não quer largar o vício. Chego a faltar sessões, para prolongar o tratamento e continuar desfrutando das benesses ali proporcionadas, como atendimento nota dez dispensado pelo pessoal que compõe a equipe. São educados, atenciosos, pacientes, simpáticos e muito profissionais. Orientam muito bem a todos, inclusive aos reincidentes como eu e tantos outros com o mesmo propósito. Estou até pensando em forjar uma outra dor para continuar freqüentando a clínica e entrar na disputa por um lugar no pódio. Pois é. Existe uma disputa ferrenha entre os freqüentadores para saber quem é o detentor da maior dor ou da maior quantidade de lesões. Quando um conta sua história e os motivos da doença, logo um outro rebate com alguma coisa pior. Todos são solidários nas dores, mas não esquecem a disputa. Passam-se receitas, remédios, fala-se de médicos, dão-se conselhos e, por vezes, até broncas nos iniciantes inexperientes.

Presenciei um senhor portador de uma escoliose, um esporão e uma lordose, passar um pito numa senhora que usava um tamanco com uma plataforma de uns dez centímetros e que, por enquanto, só tinha duas dores, uma escoliose e um esporão. Dizia ele: - A senhora deveria se cuidar mais, se é que quer melhorar. Onde já se viu uma pessoa com os seus problemas, andar trepada numa coisa dessas. Tem que calçar um sapato baixo com uma palmilha especial. E por aí foi, resmungando coisas que só quem tem dores e ainda não aprendeu a curtí-las, diz.

Quando se geme de dor, logo se estabelece um comparativo com outra pessoa em condições piores e que suporta calado. “Você é muito manhoso! O fulano ali tem dores muito piores que as suas, e não está nem gemendo. Vê se fica calado”. É comum a televisão estar ligada num desses programas de tragédias de final de tarde, onde o apresentador desolado mostra um semblante tristonho, não se sabe se por pena dos personagens ou pela falta de público.Poder-se-ia atribuir-lhe uma dor qualquer ou indicar-lhe a minha clínica para gravar o seu programa ao vivo, visto que as tragédias são mais reais e poderia lhe proporcionar uma maior audiência.

Quando chega alguém com muleta, normalmente às segundas-feiras, com torção no tornozelo, comenta-se em voz baixa: “Foi futebol! Bem feito! Poderia ter praticado uma boa ação para minimizar a violência; no entanto, a praticou. Olha só no que deu. Bem feito mesmo!” “É verdade, observa outro, mas na idade dele é muito fácil curar. É só imobilizar. Colocar gelo. Não andar. Não dirigir. Não amar. Não respirar. Em uma semana estará curado”. Um terceiro não resiste: - Eu quero ver é na nossa idade; ficar bom em tão pouco tempo e com tão pouco esforço. É, mas é até melhor. Só assim sairemos de casa e isso nos distrai”.

Ao lado, uma senhora uma tanto obesa, com uma perna enfaixada, comenta que só mesmo reza, e muita, é que a faria melhorar rapidamente, e acrescentou: - Quando eu era menina, estas dores com nomes difíceis como escoliose, tendinite, hiper-cifose e outras tantas, sequer existiam. Falava-se em espinhela caída, dor de ventruzidade, peitos abertos e encruzamento da zapá, cujo único remédio existente era a reza forte das benzedeiras oficiais de cada região, que até parto difícil resolviam. Rezavam fazendo cruzes com galhos de arruda ou alecrim e no mesmo dia a pessoa ficava boa. Quando percebiam que a ou o doente tinha manha, usavam um galho de urtiga e na terceira passagem o individuo já pulava da cama, bonzinho, apenas com um pouco de coceira. Conta-se que lá no sertão de Pernambuco, pras bandas de Sertânia, havia uma velha rezadeira com poderes de macumbeira ou catimbozeira, chamada Juvilina, que rezava com uma toalha e quando acabava a reza, a toalha tinha encolhido um palmo.

Lá na clínica a maioria chega se contorcendo de dores e à medida que o papo rola, esquecem as mesmas e só vão lembrá-las diante do profissional ou dos aparelhos. Aí gemem e choram seus males esquecidos minutos antes. É a disputa enrustida pelo maior sofrimento, é o masoquismo aflorando no subconsciente de cada um.

Quando cumprimentamos os presentes, perguntando-lhes se vão bem, muitos respondem que sim. Vão bem, sim. Bem mais perto. Perto de Deus.

Como diz o ditado, “ A VIDA CONTINUA” e “AS DORES TAMBEM’’.

Rio de janeiro, 03 de julho de 2003.
Aguinaldo Morais Valença. Guiné.


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