Um Contador De Histórias
Autor: Alfeu Valença
Publicado dia 03 de Junho de 2008

Um Contador De Histórias


Magro, era apelidado de Gordo.

Atendia por Joaquim, no batistério constava Francisco.

Joaquim. Joaquim Gordo.

Nunca procurou saber o por quê do codinome. Nunca foi importante saber.

De origem controversa, parece que chegou a Riachão no meio de uma leva de retirantes fugindo da seca. Pai e mãe desconhecidos tinha como único documento uma remendada certidão de batismo da paróquia de Salgueiro. Fazendo biscates e mandados, foi absorvido pela cidade.

Como soldado foi para a Itália, quase no fim da segunda guerra mundial. Celebridade e sustento foram os resultados práticos que ganhou. Jamais tendo visto um soldado alemão, no retorno ganhou homenagem pública na Câmara Municipal. Viveu o resto da vida com a pensão de ex-combatente.

Vaidoso, não poupava brilhantina nos cabelos bem penteados. Camisas engomadas e calças bem vincadas destoavam com o uso permanente de chinelos, forçado pelos sempre dolorosos joanetes. Odiava os joanetes!

Não casou e aconselhava o celibato.”Mulher só serve pra dar trabalho e fazer falta!?, repetia com ares de filósofo.

Sem conhecer escolas, aprendeu a ler. Na verdade, menos que ler. Conseguia decifrar os desenhos das palavras e soletrava com muita dificuldade, não impedindo que lesse tudo que pegasse. Bíblia, almanaques do Biotônico, cartazes de cinema, bilhetes de rifas, revistas e livros velhos, nada escapava à sua fome de leitura.

Escrever, nunca aprendeu. Talvez por essa razão tenha desenvolvido enorme capacidade de comunicação oral. Gostava, com ar professoral, de descrever suas leituras.

Orgulhava-se dos olhos azuis, que, contrastando com a pele morena, usava para alegar descendência de Maurício de Nassau.

Fácil de ser encontrado. Fazia ponto no caldo de cana Abelha Rainha - justa homenagem ao permanente enxame que disputava com os clientes a doçura da bebida - onde, ocupando sempre a mesma cadeira e escondendo os joanetes sob a mesa, era cercado por meninos e curiosos ávidos por suas histórias.

Imaginação fértil, romanceava com base nas leituras diversificadas e mal compreendidas. Misturava mitologia grega com Jeca Tatu, Napoleão Bonaparte com Domingos da Guia, índia com Índia, Rei Arthur com Lampião, Cabral com Colombo e pediatria com pederastia.

Injustamente era taxado de mentiroso. Engano e incompreensão! Não mentia. Criava, exagerava, acreditava ...

Desconfiado, interrompia seus relatos tão logo percebia a presença dos estudantes de fora - denominação usual na cidade para os filhos da terra que estudavam em Recife . Não sabia, inocente, da admiração que despertava nos universitários : “Poderia ser um Câmara Cascudo se tivesse estudado?, afirmavam, em rodadas de chope nos bares da capital, comentando a folclórica figura.

As histórias desenvolvidas por Joaquim Gordo com freqüência tinham grande número de personagens. Costumava concluir suas narrativas com terremotos, maremotos ou erupções vulcânicas. Às vezes inventava um surto de bubônica ou gripe espanhola. Matava a todos! Era a saída que encontrava para resolver o problema gerado pelo excesso de protagonistas.

As catástrofes se impunham também quando, tarde da noite, o dono do caldo de cana começava a virar as cadeiras sobre as mesas, sinalizando ter chegado a hora de fechar o estabelecimento. Pouco criativa talvez, desumana com certeza, mas bastante prática maneira de concluir seus pantins.

Dos velhos livros de História herdados de alunos do Grupo Escolar, adquiriu profunda admiração por Solano Lopez. Acusava Caxias de covarde e achava a Tríplice Aliança, que por menosprezo ou ignorância - nunca se soube - chamava de Tripa Aliança, uma safadeza armada para massacrar o pobre Paraguai.

Descrevia a batalha de Cerro Corá com detalhes somente percebidos por quem lá estivera: "...a certa altura, sob extensa camada de fumaça, nada se via. Apenas se podia ouvir o sibilar das balas, o troar-troar dos canhões e os tirintintins das baionetas", descrevia com a voz rouca, emocionada. O público silencioso. Os seus olhos azuis, faiscando, fixados em algum ponto distante, alto, infinito.

Quem sabe, tal como contava, ele estava realmente vendo Solano Lopez no aviãozinho teco-teco que usara para fugir e buscar asilo na Suíça?

Alfeu Valença


Artigos anteriores:

25/05/2011 - O Gronsúvio
03/06/2008 - Um Contador De Histórias
09/05/2004 - O incrível Zé Mota
22/02/2004 - O Cego Que Viu
08/02/2004 - Poemas: O Tempo e Libertação
08/02/2004 - Critica: Sebastião Cintra, um lírico telúrico.
19/10/2003 - Sempre Haverá Uma Esperança
28/09/2003 - Agradecendo um Presente
14/09/2003 - A Catedral
17/08/2003 - Clínica de Fisioterapia
10/08/2003 - Poema: Minha Terra Natal
02/08/2003 - Informações


©2003-2024 - Portal São Bento do Una